sábado, 14 de julho de 2018

Crivella e a suposta esquerda que lhe defende


J. Tejo
do Espaço Marxista

No texto Milícias cristãs e a marcha à teocracia, do longínquo mês de março de 2015, falávamos do avanço do fundamentalismo cristão no Brasil tendo como mote a apresentação pública da milícia de Edir Macedo. De lá para cá só piorou: em 2016 Marcelo Crivella (PRB), bispo da mesma Igreja Universal do Reino de Deus, apoiado pelos candidatos de direita derrotados no primeiro turno, logrou superar Marcelo Freixo do PSOL e, assim, assumir a prefeitura do Rio de Janeiro. O resultado era esperado, com o aparelhamento da máquina municipal pelo neopentecostalismo e a violação do princípio da laicidade, que saltaram ainda mais aos olhos com o vazamento de áudio de reunião entre o prefeito Crivella e líderes evangélicos no Palácio da Cidade, sede da prefeitura, onde os mesmos receberam promessas de uma série de benesses e favorecimentos. Tal reunião "evangelical" resultou no pedido de impeachment do bispo-prefeito, rejeitado por seus aliados na Câmara de Vereadores.

Os marxistas adotamos o método dialético quando nos debruçamos sobre os acontecimentos da vida política e da luta de classes. Assim evitamos as armadilhas do idealismo, do romantismo e quaisquer outras análises binárias e superficiais -à esquerda ou à direita-, que tanto desorientam setores da suposta (e auto-declarada) "vanguarda" da classe trabalhadora. Abandonar a dialética é fazer como os sectários criticados por Trotsky no "Programa de Transição", aqueles que "só são capazes de distinguir duas cores: o branco e o preto", e que "para não se expor à tentação, simplificam a realidade".

Faço a observação acima porque, bizarro que seja, tive a surpresa de ler comentários, partindo de uma suposta posição de esquerda, contra o impeachment de Crivella porque a Rede Globo é a favor. O mecanicismo salta aos olhos: é a cômoda posição de automaticamente ficar de um lado porque o inimigo está do outro. O velho Leonel Brizola possui a famosa frase, "se a Rede Globo for a favor, somos contra". É uma frase forte, é verdade, de efeito, mas a luta de classes precisa de muito mais que isso. Sobretudo não é possível adotar um mantra para todos os momentos da vida, ainda mais um simplista como esse.

Quem chega à conclusão de que Crivella é o lado "bom" na refrega porque a Globo volta suas baterias contra ele é porque é simplesmente incapaz de compreender que não há "uma" burguesia, "um" lado explorador. A burguesia, apesar de em essência homogênea -inclusive internacionalmente- em seus interesses de classe, possui contradições, disputas, distensões entre si. É notória a disputa há muitos anos entre a Rede Globo e a Rede Record, de propriedade da Igreja Universal. Os Marinhos e Edir Macedo são inimigos, e evidentemente aqueles, detentores da hegemonia midiática no país, têm interesse na derrocada deste. Nada de novo nisso: os burgueses se digladiam, é lobo comendo lobo na lei da selva capitalista. Conjunturalmente, determinado setor da burguesia pode estar representando um lado mais progressista (ou menos atrasado) em dada disputa, e pode ser que tenhamos que emblocar com ele. Problema nenhum em cerrar fileiras com setores da burguesia. Trotsky dizia que "em todos os casos nos quais ela [a burguesia nacional] enfrenta diretamente os imperialistas estrangeiros ou seus agentes reacionários fascistas, lhe damos nosso pleno apoio revolucionário". Refere-se a momentos mais agudizados da luta de classes, é verdade, mas entendo que o mesmo raciocínio se aplica às disputas cotidianas inter-burguesas quando, claramente, há um campo melhor (ou menos pior) para os trabalhadores e demais pautas progressistas (deixando claro que isso não significa, em momento algum, capitular ou se subordinar a tal campo burguês "bom"; pelo contrário, tratar-se-ia de uma frente pontual, dentro de uma conjuntura específica e com limites bem definidos).

Dito isso, pergunto: por acaso a Igreja Universal do Reino de Deus de Edir Macedo possui a menor tinta progressista para que mereça apoio "crítico" da esquerda? Não há conjuntura possível, entendo eu, que justifique a unidade de ação com o fundamentalismo cristão neopentecostal (a menos que cogitemos um hipotético cenário, drástico ao extremo; mas estou abordando a vida real e não a ficção científica). Pelo contrário, progressista seria a queda do governo de Marcelo Crivella, apesar da Globo também ter interesse nisso. Os trabalhadores do Rio de Janeiro precisam de seu próprio programa, não podem ficar na defensiva. Evitar uma solução política porque também atende -apesar de por motivos e intenções diversos- outros adversários é um misto de covardia e oportunismo. Churchill queria o fim de Hitler, mas só um louco cogitaria que aqueles que se opõem ao imperialismo britânico deveriam então estar do lado de Hitler. Mas quem sucederá Crivella?, poderão perguntar preocupados. Levando em conta que a direita neoliberal já ocupa o Palácio da Cidade, e uma direita neoliberal fundamentalista, não é uma preocupação séria. Mas e o voto popular?, Crivella não foi eleito democraticamente?- perguntas eivadas de inocente ilusão (quando não desfaçatez) no institucionalismo e no processo eleitoral burgueses, viciados, maculados pelo abuso do poder político e econômico.

Para nós, como Trotsky ensinou, Stálin derrubado pelos trabalhadores é uma coisa, por Hitler e pelo Mikado, coisa bem diferente. No primeiro caso, é um grande passo para o socialismo, no segundo, a vitória da contrarrevolução. Algum imbecil poderia forçar um paralelo histórico e dizer que não podemos permitir que Crivella seja derrubado pela Globo. Mas Crivella não é Stálin. Não estamos falando da gerência de um Estado Operário, e sim de uma cidade brutalmente desigual, gerida de forma ultra-capitalista e aparelhada pelo fundamentalismo cristão. Não há nada aí que beneficie a classe trabalhadora carioca, de modo que é um crime político qualquer defesa de Crivella por parte de suposta "esquerda".

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