Prosseguimos os comentários sobre os apontamentos de conjuntura do MES. A primeira parte está aqui.
É falso que haja uma direitização da situação mundial como sustentam alguns. Há grupos contrarrevolucionários, e a também peso político de partidos e correntes de direita na Europa, nos países do Este, o mesmo governo de Putin é bem direitista, também os candidatos direitistas do Tea Party nos EUA por exemplo, mas não podemos dizer que a situação mundial está indo para a direita ou que surjam na pequena burguesia grandes setores que vão até o fascismo ou um proto fascismo. Hás direitas não são o fator dominante na situação mundial. (Uma prova real disto que entusiasma, é o humanismo solidário que conservam as massas europeias, visível nas torcidas de futebol de recebimento dos refugiados na Alemanha). Seguindo com o tema da direitização por exemplo mesmo na França a filha Marie Le Pen derrotou a seu pai que era sim a encarnação do fascismo.
Nós do blog Espaço Marxista entendemos que, mais que "direitização", há uma fascistização da situação mundial. Fruto, conforme pensamos, da ofensiva do imperialismo para recuperar o prejuízo da crise econômica de fins dos anos 2000, o que é agravado pela ausência de uma direção revolucionária ou de um bloco socialista, como o soviético do passado. Essa ofensiva reacionária se dá em todos os campos e de todas as formas: intervenção armada direta e/ou golpismo em países que não prestem obediência canina, uso de instrumentos jurídicos e econômicos etc., ou seja, o imperialismo tem um vasto cabedal de ferramentas para consolidar status quo e recuperar posições. Os episódios cotidianos da luta de classes no Brasil e no mundo devem ser compreendidos no bojo desse cenário, e não tomados isoladamente.
Essa escalada reacionária não se dá sem resistência, todavia. Conforme falamos na primeira parte destes comentários, o bloco alternativo capitaneado -ainda que indireta ou apenas conjunturalmente- pela Rússia já se desenha, englobando países que estão à margem da política de Washington. Ainda que tais países e seus dirigentes não sejam o "cenário dos sonhos" de um marxista revolucionário -sendo, evidentemente, que é preocupante que um dito marxista revolucionário opte por idealizações ao invés da análise concreta da situação concreta-, são os atores reais, existentes, da resistência ao imperialismo, e por isso nós temos convocado a frente única com tal bloco.
o fim do bolivarianismo como modelo alternativo e como processo político (...) Se a direita especulava por uma volta ao neoliberalismo em estreita associação com os EUA, não parece que isto seja possível pelas lutas sociais, a mesma competência econômica que se estabeleceu no continente com a China, e em definitivo porque as massas latino-americanas são as que mais experiência tem feito com a direita. Daí as dificuldades que tem na Venezuela, Chile, Equador, Bolívia, Argentina e inclusive no Brasil. Como dissemos, existe por hora uma nova localização dos EUA na América Latina, tanto em sua política desde os acordos do Pacífico como sua nova política sobre Cuba.
Por que "fim" do projeto bolivariano? Em 6 de dezembro (o 6D) haverá eleições legislativas na Venezuela. Se, como pensamos, o povo venezuelano está satisfeito com o projeto bolivariano, as urnas ratificarão isso. É claro que há críticas e imperfeições; mas a vanguarda da classe trabalhadora venezuelana luta em la defensa y profundización del proceso bolivariano (aqui), e não pela sua derrubada. Perguntamos: que alternativa à esquerda da Revolução Bolivariana está colocada? Não há. Há os grupos e seitas pequeno-burgueses e ultra-esquerdistas, bradando seu "purismo" revolucionário, ou mesmo aqueles que, de forma menos histriônica, elaboram críticas consistentes, mas nem um nem outro está sequer perto de servir de alternativa de massas. Portanto, a derrocada do bolivarianismo significa a ascensão da direita fascista e o realinhamento do país na órbita de Washington. Não podemos acreditar que um marxista sério esteja de acordo com esse final.
A "volta ao neoliberalismo em estreita associação com os EUA", na América do Sul, não é possível em razão das lutas sociais e do alinhamento econômico com a China. Ora, sendo assim é preciso colocar as coisas às claras: muito das lutas sociais em Sudamérica é fruto do bolivarianismo, não por acaso no rol de países citados 3 (três) conformam o que chamamos de Eixo Bolivariano: Equador, Bolívia e Venezuela. Como dizer que o projeto bolivariano "chegou ao fim"? Se chegou ao fim não há luta social que barre o retorno do neoliberalismo, portanto as notas do MES caem em contradição. Outra: o alinhamento econômico com a China, que o texto trata abertamente como sendo progressista (afinal, é um dos fatores que impede o retorno do neoliberalismo ianque). China de um lado, imperialismo estadunidense de outro; como não admitir a polarização que se desenha? E, se há pólos em luta, não se pode ficar em cima do muro.
Por outra parte, o fim do bolivarianismo se expressa mais claramente na Venezuela onde há um giro até um bonapartismo populista perigoso cuja maior expressão é o tratamento para com os imigrantes colombianos na fronteira, mas que pode ter mais consequências para o movimento operário. No Equador, Correa mantém uma posição de apoio de massas e talvez mais independente, mas a crise econômica o leva a pactuar com as companias multinacionais. O enfrentamento com o indigenismo, por mais que se queira combinar com a direita é pouco sustentável, já que apesar de sua burocratização a CONAIE e sua luta expressa o deslocamento que se produziu pelo acordo com grandes corporações. Na Bolívia, Evo conseguiu mudanças progressivas democráticas e de soberania nacional, mas estas conquistas, que foram resultados de grandes lutas e que se mantém, levaram também a uma adaptação do capital multinacional com o qual negociou acordos.
A conclusão é uma: estes processos não podem ficar na metade do caminho. Se isto acontecer vão retroceder, como foi colocado quando prima a burocratização (como aconteceu em todo o mundo), termina em pactos e retrocessos. Tem que haver uma política de radicalização permanente das mudanças e das medidas no quadro de que se necessita uma política de integração latino-americana pela II independência. Avançar nessa direção só é possível com o povo organizado e mobilizado.
Vejam a confusão. O mesmo projeto (com matizes conforme o país, mas o mesmo projeto) que possui "apoio de massas", que trouxe "mudanças progressivas democráticas e de soberania nacional", teria "chegado ao fim". Isso é possível? Não é, e o próprio MES, no parágrafo seguinte acima, destaca que tais processos não podem ficar no meio do caminho senão pactuarão (mais ainda, que seja) com a burguesia e retrocederão. Penso que, aqui (quero dizer, na forma como o parágrafo foi formulado), o MES está alinhado com as demais forças progressistas da América do Sul, no espírito não de dar apoio "acrítico" às direções bolivarianas, mas de estar com elas, ombrear com elas, participar, enfim, para que o projeto não fique no caminho e sim avance.
Trotsky nos ensina:
Aqueles que são incapazes de defender as conquistas já obtidas, nunca poderão lutar por novas. ["Carta aos Trabalhadores da URSS", 1940. Em inglês, aqui]
O soçobro (o "fim" tantas vezes insistido, ainda que como vimos contraditoriamente com o resto do documento, pelo MES) da Revolução Bolivariana será um retrocesso incomensurável para a classe trabalhadora de Sudamérica, em todos os aspectos -social, econômico, democrático-, enfraquecerá o bloco alternativo que se desenha e, desgraçadamente, significará o recrudescimento da dominação ianque sobre o continente. Esse cenário é inadmissível. Por isso o blog Espaço Marxista se junta à, e reivindica como sua, Revolução Bolivariana, e conclamamos todas as forças populares e de esquerda do continente a fazer o mesmo.
Nós temos que continuar sendo parte dos processos sem perder de vista as limitações e mantendo-nos como corrente leninista trotskista dentro dos mesmos
Perfeitamente. Em momento algum estamos falando de "seguidismo" ou apoio acrítico. Nossa meta é a revolução socialista na perspectiva de construção do comunismo. Não queremos a Revolução Bolivariana como está, e sim lutamos por sua agudização. Mas para isso é preciso somar forças na construção, e não, de fora, apontar os dedos sectários e bradar "verdades" ultra-esquerdistas, como é a prática rotineira das seitas pequeno-burguesas.
Nós nos diferenciamos de tais seitas. Ao contrário dos "super revolucionários" que só apoiam o movimento, a revolução, o partido, "perfeitos", "exatos", nós estamos cientes de que a luta de classes é a arena da contradição, da confusão, onde a História -em maiúsculas- transcorre fluida e sinuosa. Reportamo-nos à nossa apresentação (aqui), notadamente itens 5 e 6, onde explicamos nossa visão de mundo.
Na nova situação internacional que precisamos viver e sobre a qual intervimos, necessitamos um novo programa de transição, que nos ajude a articular as consignas democráticas e transicionais.
No caso da América Latina segue sendo importante o problema nacional e democrático (agora não apenas contra os EUA mas também contra a China),
Como não somos revolucionários "de manual", dogmáticos, sabemos que Marx, Lênin e Trotsky não deram a palavra "final" sobre tudo. Nossa doutrina não é um dogma, mas um guia para a ação, na frase assaz conhecida. No item 2 da nossa apresentação deixamos isso claro. Mas "atualizações" devem ser sempre entendidas com parcimônia e critério, quando se trata, justamente, de um guia para a ação calcado no método materialista dialético. Dizemos isso porque tal caráter, dialético, dá ao marxismo uma capacidade de transformação e regeneração constante, inclusive porque os desafios colocados -a derrocada do sistema burguês pela revolução proletária- estão na ordem do dia desde meados do século XIX.
Anos atrás dizíamos em um de nossos blogs:
O revisionismo não é só o reformismo (via pacífica), como dito acima, pois abrange outras mentalidades. Por exemplo, a que relativiza a luta de classes como motor econômico da História e/ou que, sob a desculpa de "modernização", cria inúmeras teses sobre a necessidade de "adaptação" do marxismo. Isso é revisionismo. O marxismo não precisa ser adaptado, pois a adaptação ao contexto faz parte de sua essência, é inerente a ele. ["Outras notas soltas- sobre socialismo", aqui]
"Adaptação ao contexto", no trecho acima, convenientemente entendida: não nos referimos a um mimetismo oportunista, mas sim queremos dizer que o marxismo é uma ferramenta de análise e, mais que isso, de transformação da realidade (undécima tese sobre Feuerbach), qualquer que seja a realidade colocada. Evidentemente há coisas do séc. XIX, ou das primeiras décadas do XX, que não necessariamente se fazem presentes -ou, se fazem, de forma diversa de então- em nosso século XXI (e Trotsky fala disso nos 90 anos do "Manifesto", aqui). Mas não é preciso tirar coelhos da cartola ou reinventar a roda. Podemos enriquecer e agregar ao marxismo -e nós mesmos estamos abertos a contributos de autores e movimentos não-marxistas, vide o item 3 da apresentação do blog Espaço Marxista-, mas isso não significa mutilar o marxismo ou fazer dele qualquer coisa.
Dito isso, pensamos que não há necessidade de um "novo programa de transição", se o de Leon Trotsky desde fins dos anos 30 está atualíssimo. Acrescentar a ele o que a luta de classes trouxe ao longo das décadas desde então (e a questão dos cenários locais, América Latina etc.), tudo bem, mas não se desfazer de tal referencial revolucionário.
Por fim, o MES fala em problema democrático e nacional [na América Latina] não apenas em face dos EUA, mas agora também em face da China. Isto é: a China considerada um país imperialista de quilate semelhante aos EUA. A esse comentário, e reprimindo a vontade de faltar com a polidez, gostaríamos de perguntar aos companheiros do MES quantas invasões bélicas a China realizou em nosso continente, quantas bases militares tem instaladas aqui e quantos golpes de Estado apoiou. Poderão lembrar Mao e Pinochet, mas em que pese tê-lo endossado a China não esteve por trás do golpe chileno. Para nós, a China está longe de ser um país imperialista, e dizemos isso enquanto severos críticos do "socialismo" chinês (em outro blog, aqui). Aliás, como falamos acima, o MES chega a considerar, como positivas -ao menos na medida em que impedem o realinhamento com Washington-, as relações chinesas no continente.
As contradições apontadas (China, Revolução Bolivariana) nos levam à seguinte conclusão: os blocos estão se desenhando. Queira-se ou não, a "guerra fria" de nossos tempos é uma realidade, e, para nós, é preciso tomar partido. Não é possível ficar neutro ou em cima do muro quando temos, de um lado, a OTAN, e de outro, Assad. Não é possível que alguma pessoa razoável coloque tais antagonistas em pé de igualdade. Será que o funesto destino da Líbia de Kadafi e do Iraque de Saddam não bastam? A queda de Assad não dará lugar aos "revolucionários" do Exército Livre Sírio (que até os oficias ianques já admitem que não existe, se é que já existiu mesmo, como se lê aqui), e sim ao jihadismo wahhabista -que o MES nestas notas reconhece como sendo reacionário- e à OTAN. Há que cerrar fileiras com Assad, portanto. Que é aliado dos russos e do eixo xiita Hezbollah-Irã. Vejam os blocos formados. É uma realidade concreta da arena de classes internacional e, repetimos, tapar os olhos e ficar alheio a isso é, do ponto de vista de uma organização revolucionária, uma traição evidente, pois é o destino dos povos do planeta que está em jogo.
Tais eram as observações que consideramos oportunas fazer. De resto, a prática é o critério da verdade, e, como diz Trotsky -reproduzimos de memória- a realidade não perdoa o menor erro de doutrina. Adelante.