domingo, 10 de janeiro de 2016

Sociedade de classes e divisão do trabalho


A cisão entre trabalho manual e intelectual é uma característica da sociedade de classes, tendo encontrado seu paroxismo em nossa presente sociedade capitalista. A busca pela maximização dos lucros chega a tal patamar que os próprios movimentos são otimizados ao extremo, fazendo do trabalhador um autômato a realizar mecanicamente gestos repetitivos, sem que possa participar -e muito menos participar criativamente- da cadeia de produção. Os "cabeças", por sua vez, técnicos, doutores, planejadores, engenheiros e toda a burocracia tecnocrata, dirigem o processo, e são colocados -social e economicamente- num patamar "superior" ao do peão que "apenas" realiza o trabalho bruto. Àqueles, os intelectuais, os louros e a dignidade; a esses, os trabalhadores braçais, a discriminação e o tratamento quase similar ao dos animais de carga.

A luta contra essa distinção é inerente à luta pelo socialismo e pela sociedade sem classes comunista. O Homem Novo guevariano, ao nosso ver, isto é, o homem livre, não-alienado, da sociedade comunista, o homem que "se sente em casa no mundo" (Fromm), é o homem completo. É apto para realizar o trabalho necessário, qualquer que seja, sem jamais conceber que haja trabalhos "inferiores" para homens "inferiores".

Como aporte teórico para o assunto, o Espaço Marxista publica abaixo três pequenos trechos sobre o tema. Fragmentos da "Ideologia Alemã", de Marx e Engels, de "A revolução dos trabalhadores", do comunista de esquerda (conselhista) holandês Anton Pannekoek e o prefácio de Bukharin ao seu "Tratado de materialismo histórico" (1921). A imagem que ilustra o post são os jovens metalúrgicos de Ivan Bevzenko (1961).

Com a divisão do trabalho, na qual estão dadas todas estas contradições, e a qual por sua vez assenta na divisão natural do trabalho na família e na separação da sociedade em famílias individuais e opostas umas às outras, está ao mesmo tempo dada também a repartição, e precisamente a repartição desigual, tanto quantitativa como qualitativa, do trabalho e dos seus produtos, e portanto a propriedade, a qual já tem o seu embrião, a sua primeira forma, na família, onde a mulher e os filhos são os escravos do homem. A escravatura latente na família, se bem que ainda muito rudimentar, é a primeira propriedade, que de resto já aqui corresponde perfeitamente à definição dos modernos economistas, segundo a qual ela é o dispor de força de trabalho [Arbeitskraft] alheia. De resto, divisão do trabalho e propriedade privada são expressões idênticas — numa enuncia-se em relação à actividade o mesmo que na outra se enuncia relativamente ao produto da actividade.

(...)

[...] a divisão do trabalho oferece-nos logo o primeiro exemplo de como, enquanto os homens se encontram na sociedade natural, ou seja, enquanto existir a cisão entre o interesse particular e o comum, enquanto, por conseguinte, a actividade não é dividida voluntariamente, mas sim naturalmente, a própria acção do homem se torna para este um poder alheio e oposto que o subjuga, em vez de ser ele a dominá-la. E que assim que o trabalho começa a ser distribuído, cada homem tem um círculo de actividade determinado e exclusivo que lhe é imposto e do qual não pode sair; será caçador, pescador ou pastor ou crítico crítico, e terá de continuar a sê-lo se não quiser perder os meios de subsistência — ao passo que na sociedade comunista, na qual cada homem não tem um círculo exclusivo de actividade, mas se pode adestrar em todos os ramos que preferir, a sociedade regula a produção geral e, precisamente desse modo, torna possível que eu faça hoje uma coisa e amanhã outra, que cace de manhã, pesque de tarde, crie gado à tardinha, critique depois da ceia, tal como me aprouver, sem ter de me tornar caçador, pescador, pastor ou crítico.

(Karl Marx e Friedrich Engels, A Ideologia Alemã)

A oposição manual-intelectual não existe na natureza: é um produto da sociedade; constitui uma distinção de classe artificial. Qualquer trabalho, mesmo o mais simples, tem tanto de intelectual como de manual. Todo o trabalho, até se tornar mecânico à força de repetição, exige a intervenção do espírito. É justamente esta combinação pensamento/ação que faz o encanto da atividade humana. Este atrativo subsiste na divisão natural do trabalho, na que assenta em diferenças de gostos e de aptidões. Mas o capitalismo perverteu estas disposições naturais. Com o fim de aumentar o lucro, levou ao extremo a divisão do trabalho, introduziu uma especialização de sentido único. Há já três séculos que, desde o seu aparecimento pela primeira vez com o sistema da manufatura, a repetição incessante das mesmas manipulações em número limitado fez do trabalho uma retina monótona, em que a utilização abusiva de certos membros ou de certas faculdades mentais, em detrimento das outras, origina uma mutilação perpétua do espírito e do corpo.


Assim [isto é, com a revolução e a mudança qualitativa na educação junto aos trabalhadores, nota nossa] formou-se um novo tipo de homens, que estudam filosofia e são guardas de fuzil na mão, que discutem os mais abstratos problemas e cortam madeira, que trabalham ao mesmo tempo nas bibliotecas e nas usinas.

(Nikolai Bukharin, Tratado de Materialismo Histórico, prefácio de setembro de 1921)
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