sexta-feira, 21 de abril de 2017

A mediação internacional é necessária na questão curda


Publicamos abaixo uma entrevista concedida pelo dirigente curdo Cemil Bayik ao órgão de mídia Al-Monitor, antes do referendo constitucional na Turquia que deliberou pelo regime presidencialista, ou seja, ampliando os poderes de Erdogan.

O Espaço Marxista é solidário à luta do povo curdo por autodeterminação, e é evidente para nós que a linha federativa, ecológica, feminista e plural do PKK é mais progressista que o nacionalismo burguês baathista de Assad. Nesse sentido, apoiamos os curdos contra o regime de Assad. Todavia, repudiamos resolutamente a influência do imperialismo estadunidense e europeu, de modo que, nas hipóteses em que os curdos estejam apoiados ou em unidade de ação com os ianques contra Assad, estaremos apoiando Assad- afinal, não se pode lutar por uma Síria "democrática" ao lado da OTAN.

Também não partilhamos, pelos mesmos motivos, do entusiasmo do dirigente curdo com a suposta boa vontade da administração Trump em mediar uma solução pacífica. Como é notório os ianques possuem suas próprias agendas e interesses e os demais povos do planeta são secundários. Em um mundo cada vez mais polarizado, estando de um lado a OTAN e de outro o "eixo do mal" -Rússia, China, Irã, países da América Latina de cunho progressista como Venezuela, Equador e Bolívia, os Estados Operários de Cuba e Coreia- soa como descolado da realidade o discurso sobre uma "terceira saída". Pelo contrário, é necessária uma frente única dos povos "marginalizados" do mundo para resistir às pretensões imperiais e construir uma realidade multipolar.

PKK: a mediação internacional é necessária na questão curda

Em uma entrevista exclusiva para Al-Monitor, Cemil Bayik, o co-presidente do conselho executivo da União das Comunidades Curdas, organização política dedicada à implantação da ideologia do confederalismo democrático de Abdullah Ocalan, e um dos líderes do Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK), deixa claro que se o referendo constitucional do dia 16 de abril na Turquia decidir pela ampliação dos poderes do presidente haverá apenas mais instabilidade; que o PKK não tem medo de continuar o combate enquanto o governo turco se recusar a negociar um tratado de paz; e o porquê dos curdos serem centrais para a paz e estabilidade no Oriente Médio. Mais uma vez, o PKK convoca a comunidade internacional, particularmente os EUA, para fazer a mediação entre o governo curdo e o PKK e solucionar a questão curda na Turquia.

Bayik, curdo da Turquia, nasceu em 1952 na província de Elazig. Foi um dos fundadores do PKK em 1978, e tem sido a espinha dorsal da organização desde então. É seu secretário-general delegado, o número dois atrás de Ocalan. Ter sido líder do Exército de Libertação Popular até 1995 (atualmente o braço militar do PKK é chamado de Força de Defesa Popular, ou HPG, liderado por Murat Karayilan) e diretor da Academia Mahsum Korkmaz, o centro de treinamento do PKK na região libanesa controlada pela Síria do Vale de Bekka, fez de Bayik um dos principais líderes militares do PKK, assim como influente pensador do partido.

Segue a entrevista.

Al-Monitor: O PKK não tem respondido como antigamente, nem militarmente nem mobilizando as massas contra a prisão de líderes do Partido Democrático dos Povos (HDP) e a destruição de cidades e vilas curdas. Isso significa que o PKK perdeu sua credibilidade com o povo? Por quê?

Bayik: A meta do governo ao desencadear a guerra contra nós foi suprimir o movimento dos curdos pela liberdade. Desgraçadamente, o Estado turco está utilizando os métodos mais letais nessa guerra. Quem quiser pode se informar pelo relatório de fevereiro da Comissão de Direitos Humanos da ONU, que teve a cobertura de vários órgãos da mídia internacional. Ele claramente indica uso de destruição em massa contra as cidades e de força excessiva. Esses fatos lamentavelmente são ignorados pelo mundo.

O PKK não perdeu sua credibilidade com o povo. Na verdade, está havendo rupturas constantes com o Estado. O Estado tenta criar movimentos alternativos durante essa guerra para afastar nossos apoiadores de nós, mas as pessoas que rompem com o Estado não se juntam a essas organizações. Tais movimentos não apresentam nenhum resultado, o que é um claro indicativo de que as massas continuam a apoiar nosso movimento por liberdade.

Al-Monitor: Como o PKK responderá, caso o "Sim" vença no referendo constitucional?

Bayik: Apoiaremos qualquer constituição que traga mais liberdade e fortaleça a democracia, o que é inclusive o nosso critério para apoiar mudanças constitucionais. Mas a mudança que eles querem, se aprovada, levará a Turquia no sentido totalmente oposto e não trará benefícios nem para os curdos nem para os turcos. Mas, caso o referendo seja derrotado, haverá uma interrupção na pauta hegemônica que beneficiará a democratização na Turquia e criará novas oportunidade para uma solução pacífica para os problemas curdos, a qual o governo turco tem se recusado apesar de nossos constantes chamados. Se o "sim" vencer, pelo contrário, acreditamos que a guerra -que recomeçou em 24 de julho de 2015- se intensificará. O estado de emergência foi declarado após a tentativa de golpe no ano passado. Isso não é novidade, aconteceu a mesma coisa depois do golpe de 1980. Estamos nessa luta há 45 anos e todos os governos falharam em suprimir nosso movimento.

Al-Monitor: Vocês convocaram a União Europeia, os EUA e a comunidade internacional por diversas vezes, para mediar a resolução da questão curda. Vocês têm recebido resposta? Ou, de outro lado, alguns acreditam que o presidente turco Recep Erdogan voltará a conversar com Abdullah Ocalan em Imrali [ilha prisão onde Ocalan está detido] caso ele realize seu desejo de mudar o sistema turco. Há esperança nesse sentido?

Bayik: Não há dúvida de que a questão curda tem ganho atenção internacional, apesar das tentativas do governo turco de diminuir a importância de nosso movimento. O contexto político anterior, que necessitava que certos poderes ficassem em silêncio diante do genocídio turco contra os curdos, não existe mais. Portanto, convocamos todos os poderes mundiais para participar e forçar a Turquia a aceitar negociações pacíficas sobre a questão curda. Já avisamos que se o governo aceitar isso, pode convidar seus aliados para monitorar o cumprimento das negociações. Mas a Turquia continua a se recusar e seus aliados não deram os passos necessários para começar as negociações. Estamos otimistas de que a nova administração estadunidense, com Donal Trump, possa encorajar a Turquia a buscar uma solução pacífica. Estamos prontos para participar de qualquer inicitiavia que traga paz e estabilidade.

No passado, em fevereiro de 2015, aceitamos o acordo de Dolmabahce, que tinha bases democráticas para a Turquia. Infelizmente, em razão de suas ambições presidenciais Erdogan o recusou.

Al-Monitor: É possível recomeçar o processo de paz com o Estado turco a partir deste ponto?

Bayik: A pergunta deve ser dirigida ao governo turco, porque de nossa parte sempre estivemos prontos para a paz. Contudo, como pode haver paz enquanto o governo continuar a acreditar que não existe uma questão curda? O governo turco se opõe aos direitos dos curdos até na Síria, que dirá na própria Turquia. Erdogan quer mostrar que não é contra os direitos do curdos mantendo boas relações com o Partido Democrático do Curdistão (PDK) no Curdistão do Sul (Iraque), mas o principal objetivo de sua relação com o PDK é a oposição ao PKK. Imagine que cidades inteiras do Curdistão do Norte (Turquia) são demolidas; milhares de ativistas aprisionados, incluindo lideranças do HDP. Como tais atos podem levar à paz? Eles querem nos forçar à rendição. A poeira pode baixar, mas isso não levará à paz.

Se o governo se recusa a uma solução pacífica, e os poderes internacionais continuam em silêncio, então não temos escolha senão continuar nossa resistência. Se uma forte resistência levar à derrota da política do AKP/ MHP (Partido da Justiça & Desenvolvimento/ Partido da Ação Nacionalista), o caminho para a democratização começará. Democratização e paz estão diretamente relacionadas. Não haverá paz a menos que a Turquia mergulhe no processo de democratização.

Al-Monitor: Recentemente e situação política na Turquia mudou. Os rebeldes apoiados pela Turquia se retiraram de Aleppo e então as conversações de [paz para a Síria envolvendo agentes internacionais, no início do ano, na capital do Cazaquistão] Astana começaram. Os curdos foram excluídos dessas conversações, qual a sua avaliação?

Bayik: A Turquia falhou em garantir o suporte para a coalização de sua política para a Síria. Não esperávamos que houvesse paz duradoura após as conversações em Astana. É impossível garantir qualquer paz para a Síria sem incluir no diálogo os curdos e outras minorias que integram as Forças Democráticas Sírias e a Federação Democrática do Norte da Síria. Os participantes das conversas em Astana carecem de apoio popular na Síria. Falta-lhes influência política, militar e social. São apenas colaboradores estrangeiros. Esse não é o caso da Federação Democrática, que possui sólidas bases e diversidade étnica e religiosa. Eles incluem árabes, siríacos, circassianos, turcomenos, cristãos, muçulmanos, yazidis e outros. A Federação Democrática está se tornando uma entidade forte na Síria, representando uma nova alternativa para os problemas da região.

Repito, estamos otimistas de que americanos e europeus estejam acompanhando o desenrolar dos acontecimentos no norte da Síria porque é de interesse geral que se fortaleça para que consiga trazer paz e estabilidade e cessar esse derramamento de sangue.

Al-Monitor: O chanceler russo Sergei Lavrov disse que há negociações entre os curdos sírios e o regime sírio sob a supervisão russa. Você acha que será possível algum tipo de acordo com o regime?

Bayik: Não há dúvida de que a mentalidade do antigo regime Baath torna qualquer solução impossível. O antigo regime tinha uma personalidade centralista e não reconhecida os direitos democráticos de nenhuma comunidade. Esse mesmo regime negou os direitos dos curdos por um longo tempo. Portanto a luta curda na Síria por direitos também faz parte da luta pela democratização da Síria. Nesse sentido, os curdos lutam pela democratização da Síria de forma independente do regime e de outras forças. Não buscamos um Estado separado. A meta é estabelecer um sistema democrático no norte da Síria, que é parte da Síria.

Quanto a alcançar um acordo com o regime sírio, isso não pode ser visto de forma simplista. A solução para a questão curda na Síria não é possível com o regime como é. Contudo, se o regime realizar mudanças democráticas e adotar uma plataforma democráticas para o futuro, então podemos dizer que há uma mudança. Caso isso aconteça, poderemos dizer que haverá possibilidade para um acordo.

Al-Monitor: Os curdos têm trabalhado ao mesmo tempo com a Rússia e com os EUA. Até que ponto poderão manter essa estratégia? Vocês disseram inúmeras vezes que a estratégia do PKK de seguir uma terceira via tem tido êxito. Isso por ora pode ser verdade, mas por quanto tempo durará?

Bayik: Os curdos têm uma causa muito legítima: lutamos contra atrocidades. Quando nosso líder Abdullah Ocallan foi levado preso para Imrali, declarou que "estamos levando adiante uma causa justa. E mostraremos isso para a Europa, os EUA, a Rússia, a China, para os cristãos, judeus e todos os demais". Nesse sentido, qualquer um pode observar a situação em Rojava e testemunhar a legitimidade da luta curda, a qual fomenta a coexistência entre diferentes religiões e grupos étnicos. Todos estão unidos contra o Estado Islâmico (Daesh) e concordam em trabalhar pela democratização da Síria. Os curdos, com sua abordagem liberal e democrática, são a base para a paz e a estabilidade da região. As Forças Democráticas Sírias colaborarão com todos que queiram buscar uma solução pacífica, estável e democrática para a região.

Al-Monitor: Há informações de que o esboço de constituição preparado durante as negociações em Astana teve participação dos curdos. Você apoia o teor dessa constituição?

Bayik: Os curdos não tiveram nenhum papel no esboço de constituição de Astana. Na verdade, o rascunho foi criticado por muitos curdos porque não partilha da visão curda sobre a Síria. O esboço sinaliza autonomia cultural, mas as Forças Democráticas do Norte da Síria são muito mais inclusivas e democráticas, então os direitos colocados no esboço são insuficientes. Se considerarmos o tratamento cruel imposto aos curdos no passado -genocídio, não-reconhecimento da existência etc.-, então evidentemente tratar dos direitos dos curdos na constituição é um fato progressista, porém, como está sendo feito, insuficiente. É preciso haver uma abordagem mais democrática para o problema sírio.

Al-Monitor: Alguns dizem que o Curdistão sírio será uma rota energética estratégica para o Mar Mediterrâneo, e que esse seria o motivo da oposição à Federação do Norte da Síria por parte da Turquia, Catar e Arábia Saudita. A Turquia estaria movendo uma guerra por razões energéticas contra vocês?

Bayik: A energia pode ser um fator, mas o principal motivo é a mentalidade fascista do governo turco na oposição aos direitos dos curdos. Em todo caso, os curdos não têm o objetivo de se apoderar de nenhum corredor energético. Buscamos uma justa distribuição dos recursos energéticos, e ao fazer isso estamos buscando acima de tudo uma solução pacífica para a questão curda.

Al-Monitor: Muitos curdos reclamaram da exclusão da palavra "Rojava" da Federação Democrática do Norte da Síria. O PKK apoia a exclusão da palavra? Isso quer dizer que o PKK quer o fim das reivindicações nacionalistas e fortalecer sua visão federalista sobre o Oriente Médio?

Bayik: Conforme entendemos, a remoção da palavra "Rojava" da Federação Democrática não está errado porque a federação não é composta apenas por Rojava. Há também muitas cidades árabes. Por exemplo, Shaddadah, Hol e outras cidades e distritos. Nesse sentido, acrescentar "Rojava" à FDNS causava uma impressão equivocada. Sua remoção não significa excluir Rojava, porque ela também está incluída na FDNS.

Se nos opomos ao nome "República Árabe da Síria" por causa do rótulo árabe, como poderíamos nomear a Federação Democrática do Norte da Síria de "Rojava"? Em todo caso Rojava faz parte da FDNS, como uma administração autônoma.

Então, respondendo, a remoção da palavra "Rojava" do nome da federação nada tem a ver com nacionalismo no PKK. O PKK não possui visões nacionalistas. Somos um movimento liberal e federativo, baseados em uma nação democrática.

A palavra "Rojava" foi removida da FDNS não porque o PKK a considere nacionalista. Porque todos sabem que não temos uma abordagem nacionalista. Nossa linha é liberal, confederativa; é nisso que nos baseamos. Se a FDNS se tornar um entidade política baseada na visão de Abdullah Ocalan, então se organizará como uma sociedade democrática onde mulheres, homens e todas as comunidades viverão e se organizarão em uma sociedade de coexistência.

Al-Monitor: Trump busca uma maior proximidade com os curdos. Há uma evolução na percepção dos EUA quanto ao PKK?

Bayik: Só o tempo dirá como essa relação se desenvolverá. Reconhecer a respeitabilidade da coexistência na Federação Democrática do Norte da Síria -o que está totalmente de acordo com a visão de Abdullah Ocalan- mas ao mesmo tempo enxergar o PKK como um inimigo não é uma boa abordagem. Devemos ser realistas, porque há diferenças ideológicas entre o PKK e os EUA. Contudo, temos presenciado partidos debatendo suas diferentes ideologias no Congresso norte-americano, e estamos convencidos de que nossas diferenças políticas também podem ser debatidas. A radicalização islâmica é um perigo muito maior para o mundo do que a ideologia dos EUA.

Deixo claro que o PKK não tem interesse na guerra. Nós buscamos a paz. Estamos otimistas de que o presidente Trump desempenhará um papel positivo em encorajar a Turquia a retornar à mesa de negociações. Estamos preparados.


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