sábado, 20 de fevereiro de 2016

Mariátegui e teoria para a prática


O texto a seguir é sobre José Carlos Mariátegui, nosso Amauta (sábio, mestre, no idioma quíchua, nome de sua famosa revista lançada em 1926), e aborda especialmente o percurso intelectual do marxista peruano.

A formação autodidata de Mariátegui

Julio Yovera

Uma premissa básica não levada em conta suficientemente nas tarefas dos marxistas peruanos foi identificada e assumida pelo Patria Roja, e se refere à "derrota ideológica, política e cultural" imposta pelo neoliberalismo.

No início dos anos 90, o pensamento liberal estava no auge e, inversamente, o marxismo sofria o mais sério revés: não apenas com a queda do chamado "socialismo real", mas também com o recuo das correntes marxistas no mundo e na América Latina em particular; e o desprestígio do dogmatismo, que se declarando formalmente marxistas e seguidores do "caminho iluminado" [sendero luminoso, N.T.] de Mariátegui, o que fizeram em verdade foi negá-lo e desnaturá-lo.

Os dois modos de pensar recomendados, "partir da realidade" e "acabar com o espontaneísmo", ficaram na teoria. Historicamente, a formação marxista no Peru, com exceção de Mariátegui e uns poucos intelectuais, tem sido débil. Em nosso país não houve domínio da concepção e do método científico marxista. Basta dizer que até nas universidades a teoria socialista científica foi proscrita. E quando se conseguiu incorporá-la à grade curricular, os docentes a converteram em quase um catecismo.

É importante que os marxistas peruanos estudem a vida e obra de Mariátegui, exemplo e paradigma ainda não totalmente valorizado. Com isso não dizemos que há que colocar no "altar da verdade" aquilo que o Amauta afirmou, e sim que é preciso fazer esforços para conhecer mais que suas deduções e falas, sua maneira de estudar e investigar.

Seu autodidatismo, por exemplo: devemos entendê-lo como um processo de aprendizagem e depois de ensino. Lia, primeiro por inquietação e curiosidade; depois, por interesse. Não se formou para "saber mais" ou para chegar à satisfação da erudição. Mariátegui passou do nível da assimilação informativa e conceitual para o nível da reflexão analítica, e então para o pensamento categorial, ou seja, a formulação de suas próprias deduções e a criação de uma teoria do socialismo no Peru.

O autodidatismo que cultivou se baseia na necessidade de conhecer e investigar integralmente a realidade para então transformá-la.

Como conseguiu isso? Essa é uma pergunta-chave poucas vezes feita e, quando feita, mal respondida. Ter conhecimento sobre a forma de como e para quê Mariátegui estudava é fundamental para o desenvolvimento de uma corrente marxista que se interesse em formular e impulsionar um projeto político de transformação do país.

O que expôs, particularmente nos "7 Ensaios de Interpretação da Realidade Peruana" e nos escritos reunidos em "Ideologia & Política", foi consequência das análises oriundas de suas leituras da teoria geral e do método de investigação marxista; da ciência e da cultura de seu tempo; de seus estudos sobre investigações nas ciências sociais; da história do Peru; das observações e conversas que fazia com as pessoas que recebia em seu domicílio em Jirón Washington.

As conclusões às quais chegou não foram verdades "fechadas". E isso lhe dá o perfil de um homem de ciência rigoroso, mas dialético e aberto.

"Nenhum destes ensaios está acabado; e não estarão enquanto eu viver, pensar e tiver algo a acrescentar ao que tiver escrito, vivido e pensado", diz em sua "Advertência" no início dos "7 Ensaios".

Toda sua obra se realizou tendo como norte a teoria do socialismo científico e como instrumento de investigação, o método materialista dialético, que alguns tentam questionar e desqualificar sem ter a mínima ideia do que se trata.

A teoria, para ele, era um marco referencial que servia de premissa de orientação. A formação que adquiriu serviu para que tivesse uma concepção materialista e isso lhe permitiu identificar as condições objetivas, que na teoria marxista se conhece como estrutura, o que também lhe permitiu identificar, estudar e investigar os fenômenos de superestrutura em suas dimensões jurídicas, educativas, culturais, éticas e estéticas.

Em uma palavra: sua visão dialética lhe permitiu identificar a realidade e seus fenômenos em constante movimento.

Ademais, teve capacidade para entender os acontecimentos em suas generalidades e particularidades. Da análise que faz da independência, por exemplo, conclui que no Peru, diferentemente da Europa, não houve uma burguesia que rompeu com a casta feudal. Ao contrário, entrou em conluio com ela, configurando-se, à época, uma sociedade semifeudal e semicolonial.

Outro de seus aportes é a análise que faz sobre a existência do fator indígena e seu papel no processo social de transformação; elaboração diferente e oposta à das teses da III Internacional, com as quais Mariátegui travou intenso debate, tanto no Congresso da Confederação Sindical Latinoamericana (Montevidéu, Uruguai, maio de 1929) como na 1ª Conferência Comunista Latinoamericana (Buenos Aires, Argentina, junho de 1929).

Para Mariátegui a concepção e a estratégia classistas não eram suficientes para traçar uma proposta de luta reivindicativa e emancipadora. Era preciso ter em conta também o papel dos sujeitos históricos próprios, como as populações nativas e indígenas de nossas sociedades.

Como Mariátegui estudou? Responder isso é crucial para empreender qualquer processo de formação ideológica marxista. Estudou de maneira planificada. É certa a seguinte afirmação: manejou bem as três fontes integrantes do marxismo- a economia política, a teoria socialista e a filosofia e seu método; mas, além disso, Mariátegui foi assíduo leitor de literatura, crítico de pintura e amante da música. Foi um humanista extraordinário.

Para que Mariátegui estudou?

Como falamos, cultivou, assimilou a teoria e estudou conforme o método materialista dialético com o propósito vivo de construir um Projeto Histórico Revolucionário e Socialista. Esforçou-se de maneira coerente para levar a teoria à ação. O mais importante de seu legado doutrinário, orgânico e programático foi a fundação da CGTP e a do partido dos marxistas-leninistas.

Mariátegui teve um norte: "contribuir para a criação do socialismo peruano", "construir um Peru novo, dentro de um mundo novo". Assumiu isso como um processo inevitável da revolução peruana, entendendo essa não como "cópia, mas sim criação heroica". O desafio que é preciso resolver agora, considerando que seu pensamento não caducou, é como gerar essa "criação heroica".

Há ainda um aspecto que gostaríamos de abordar, mesmo que brevemente. Dissemos que Mariátegui estudou a realidade para transformá-la. Quando retornou da Europa, com o objetivo de criar uma corrente marxista, ele lecionou no curso História da Crise Mundial, na Universidade Popular Manuel González Prada.

Sua prática docente corresponde àquilo que hoje chamamos "pedagogia crítica". Ela busca criar consciência para formar o sujeitos históricos da mudança.

Podemos situar o intelectual Antonio Gramsci nesta corrente. O mesmo pode ser dito de Paulo Freire, do Brasil. E de dois desconhecidos pedagogos norteamericanos, Henry Giroux e Peter Mclaren, representantes da pedagogia crítica. Mas disso falaremos mais tarde.

Hoje concluímos dizemos que Mariátegui é o referencial mais importante que os marxistas peruanos e latinoamericanos têm para retomar o rumo e avançar.

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